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O Deus de Kaká


(À Natália Lofrano)

Há uma velha história, que narra o diálogo entre um lorde inglês e seu mordomo Thomas, em que este, olhando pela janela da mansão, observando o tempo fechado, se vira e diz ao lorde:
- Parece que hoje teremos chuva, senhor.
Ao que responde o lorde:
- Não, Thomas, você terá a sua chuva e eu a minha. Lembrei-me dela, ao ler reportagem de Mônica Bérgamo, na Folha de S. Paulo, do dia 17 último, revelando a interpretação pela bispa Caroline, esposa de Kaká, dos fatos que culminaram na ida do talentoso jogador para o Real Madri. Quem leu, com certeza deve ter manifestado seu espanto com a fala desta jovem senhora que, ao que parece, acredita ser o seu marido um eleito de Deus para que todas as benesses caiam em suas mãos. Entendi que deve existir um Deus para os mortais comuns, dos quais faço parte, e um outro especial para o Kaká, pois afirmar que em tempos de crise, Ele fez cair dinheiro nas mãos da diretoria do Real Madri para a compra do jogador, traçando assim um plano para que ali abram mais uma filial de sua igreja, ou é muita ingenuidade ou, então, crença demais em nossa estupidez. Não quero referir-me às outras declarações sobre a opção da virgindade antes do casamento, pois acho que esta escolha, para muitos, é natural, é apenas uma escolha particular que deve ser respeitada. Nada contra. Mas, pelo que entendo, a bispa deveria prender-se melhor aos sinais inscritos no Evangelho e se assim o fizesse, com certeza veria que Kaká seguiu à risca a metáfora da Parábola dos Talentos, pois tendo recebido do “patrão” tantos talentos, soube multiplicá-los, não fazendo como a maioria que os enterra sem jamais coloca-los à prova da vida com seus riscos e suas possibilidades. Como se vê, nada de milagre de fazer chover dinheiro para sua transferência, mas apenas o fato de que o jogador colhe os frutos da multiplicação de seus talentos: méritos dele, claro, pois não há milagres que venham do absolutamente nada.

Muito se tem discutido sobre o tema da fé, nos tempos atuais e todas as discussões têm levado ao corolário da necessidade de se alcançar uma fé madura, compenetrada nos mistérios da história da Igreja através dos tempos, em contraposição à fé ingênua e não questionadora. Não podemos, portanto, assumir o espírito da manada que segue o guia sem a consciência dos passos que não sabemos para onde vão. Fé e consciência, segundo meu ponto de vista, são inseparáveis em seu conteúdo. E não se trata aqui de favorecer este ou aquele credo religioso: além da liberdade de culto que cada um professa, é certo que até agora todas as religiões têm falhado no cumprimento de suas metas. Algumas fazem o “mea culpa” e outras se escondem por trás de “um nada sei”. Nada de novo sob o sol, conforme se vê. Trata-se, isto sim, de buscarmos uma fé racional, condizente com os mais comuns dos princípios éticos sob os quais deveríamos viver e conviver. É certo que alguns pensam de maneira diferente a questão dos direitos e deveres de cada um. Lembrando o episódio das denúncias contra o presidente do Senado, José Sarney, e a defesa que dele fez nosso presidente (“Sarney não é um homem comum”) dá para entender que eu talvez esteja mesmo completamente errado: alguns têm mais direito à própria chuva e o resto que se molhe.

PROF.DR. WILSON DAHER

Psiquiatra e membro da Academia Rio-pretense de Letras e Cultura

Fonte: Jornal Diário da Região de 30/07/2009

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