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NÃO SOU NENHUM ABRAÃO, MAS...


Acho que foi um sonho, não sei.

Fazia uma refeição com três outros homens, em casa. Eram meus convidados por alguma razão. Tinham um modo diferente de ser, quase sobrenatural. Um deles era ainda mais especial. Disse-me que estavam a caminho de Brasília, para conhecer os bastidores do Congresso Nacional. Fiquei interessado.

- Será a primeira vez de vocês por lá?

- Não. Mas com esse propósito, podemos dizer que sim.

- Que propósito exatamente?

- Saber de perto sobre todos esses escândalos: castelos, amantes, passagens, grampos, mensalões, mensalinhos, nepotismo... Se tudo for verdade, destruiremos por completo a Câmara, o Senado, e tudo o mais... Ninguém escapará.

Por um momento, não soube o que dizer. Cheio de imagens mentais, só voltei ao cenário quando estava só com aquele que me falava. Os outros dois tinham partido, como se seguissem na frente.

Tomei coragem e perguntei:

- Senhor, os justos serão exterminados com os ímpios? Se houver cinquenta justos no Congresso, ainda assim não pouparás nada nem ninguém? Nem por amor aos cinquenta justos? Longe do Senhor, tal coisa: matar indistintamente justos e ímpios. Onde estaria, nesse caso, a justiça?

- Se eu encontrar cinquenta justos, pouparei a todos...

Fiquei ainda mais incomodado. Não senti em suas palavras qualquer garantia de que os tais cinquenta seriam encontrados. Respirei fundo e continuei:

- Sei que já fui ousado questionando suas intenções, mas... e se faltarem cinco para os cinquenta? De repente, há uns quarenta e cinco justos por lá. Ainda assim tudo será destruído?

- Se eu encontrar quarenta e cinco justos, pouparei a todos...

Quem está na chuva é para se molhar:

- E se houver ali quarenta justos?

- Não destruirei ninguém, por amor aos quarenta...

- E se houver trinta?

- Ninguém morre...

- E se houver vinte?

- Ninguém...

Por um pouco, hesitei. O que estou fazendo? – pensei comigo. Impossível não haja vinte justos num lugar tão cheio de gente. Tremi. Arrisquei:

- E se, porventura, por um desses acidentes de percurso da vida, houver ali dez justos e não mais que dez justos? Morrerão com todos os outros?

- Se eu encontrar dez justos, pouparei a todos...

Acho que me falou estas palavras já virando-se, saindo, como quem parte decididamente. Acenou-me. Tive muito medo. Tive muito sono. Um sono inexplicável. Dormi. Acordei como se ouvisse um grande barulho, uma explosão. Suava frio.

Até hoje não entendi direito tudo aquilo. De qualquer modo, tudo permanece igual. Assustadora e insuportavelmente igual.

Marcelo Gomes
www.espacopalavra.com.br

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