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Concordata entre Brasil e Vaticano atinge a laicidade do estado brasileiro

O Jornal da Ciência, da SBPC (link ao lado), publicou ontem artigo de Roseli Fischmann, professora da faculdade de Educação da USP, com notícias preocupantes sobre o acordo entre o Brasil e a Santa Sé, assinado no dia 13 de novembro último e tornado público somente depois de sua assinatura, quando de sua tramitação na câmara dos deputados. Para quem desejar, o texto da concordata pode se acessado diretamente a partir do site do Ministério das Relações Exteriores.
O acordo define o próprio estatuto jurídico da Igreja Católica no Brasil, e estabelece a CNBB como a instância local de representação da Igreja, com a qual o governo brasileiro passará a dialogar para assuntos como ensino religioso, casamento e outros pontos que precisem ser regulamentados no futuro, após a assinatura do acordo.
Segundo Roseli Fischmann, os principais problemas que a ratificação da concordata bi-lateral entre Brasil e Vaticano apresenta são os seguintes:
Em primeiro lugar, trata-se de um acordo entre um estado teocrático e uma república. Nada impede que o Brasil faça acordos com uma teocracia, mas estes acordos internacionais incidem sobre o direito nacional. Dessa forma, decisões tomadas a partir do Direito canônico serão incorporadas - ou irão interferir - na legislação de uma república, que por definição é laica, com separação oficial entre Igreja e Estado. Ao se firmar uma concordata em que uma das partes possui dupla identidade e é regulada por um Direito bastante diferente do nosso (Direito Canônico), como conciliar esta situação? Nas palavras da autora do artigo,
Observe-se que o texto assinado busca justificação “baseando-se, a Santa Sé, nos documentos do Concílio Vaticano II e no Código de Direito Canônico, e a República Federativa do Brasil, no seu ordenamento jurídico”. Ora, essa identidade dupla – Santa Sé, como identidade política de Estado, e Igreja Católica, como religião – tem direito de escolher a norma que quiser para regulamentar sua vida e de seus seguidores; estes merecem respeito em seu direito de crença e culto, mas também merecem que sejam respeitados seus demais direitos como cidadãos brasileiros, sendo que poderão invocá-los quando quiserem, sem restrições ou privilégios.
Já o Brasil, sendo uma República, que tem no princípio da laicidade do Estado um de seus fundamentos desde sua proclamação em 1889, pode evidentemente dialogar, como dialoga com religiões e outras forças sociais, mas não fazer acordo com entidade jurídica que, baseando-se em princípios teocráticos e normas exaradas a partir desses mesmos princípios, busca estabelecer condutas e deveres, enquanto suprime direitos de cidadãos brasileiros em território brasileiro.
Mais que estabelecer o território dos templos católicos como se tivessem imunidade diplomática, o acordo estende seu braço normativo e restritivo de direitos estabelecidos pela Constituição Federal ao conjunto da cidadania brasileira. Como isso se dá?
Não sabemos, mas já podemos ficar preocupados com o problema da representação política: o artigo 18 da concordata estipula que a CNBB será a representante do Vaticano no Brasil. Atenção, a CNBB, não uma comissão paritária (como é em Portugal), nem qualquer grupo ecumênico composto dentro da Câmara dos Deputados, nem qualquer outro foro. Isso dá à Igreja Católica um poder de representação e de negociação com o estado brasileiro que a) deixa a Igreja Católica em posição de enorme vantagem frente às outras religiões; b) o que é mais preocupante: cria uma situação na qual os direitos civis dos indivíduos passam a sofrer uma duplicidade de jurisdições, tanto a do estado brasileiro quanto da Santa Sé e do Direito Canônico. A situação mais imediata, na qual se pode sentir os efeitos dessa duplicidade incide sobre a questão dos casamentos e dos divórcios:
(…) O artigo 12 do texto assinado no Vaticano afirma a possibilidade de se atribuir validade civil ao casamento religioso, como previsto na Constituição Federal, contudo inovando ao expandir para a Igreja Católica em seu parágrafo 1.º: “§ 1º. A homologação das sentenças eclesiásticas em matéria matrimonial, confirmadas pelo órgão de controle superior da Santa Sé, será efetuada nos termos da legislação brasileira sobre homologação de sentenças estrangeiras.”
Se o caput do artigo não inova em relação ao que já permite a Constituição Federal, ou seja, que casamentos religiosos em geral, desde que reconhecido pela respectiva autoridade religiosa, aí incluídas religiões e denominações com existência regular no Brasil, possam ter efeito civil. A inovação se dá a abrir a porta para que anulações religiosas sejam reconhecidas com validade civil, privilegiando uns contra outros que dependem, para igual medida, de trâmites junto a apropriados órgãos do Estado, com o respectivo tratamento jurídico.
É que, por não reconhecer o divórcio, tendo inclusive retardado ao máximo a aprovação da lei que o estabeleceu no Brasil apenas em 1977 – e frente ao fato de que muitos católicos se vêm na iminência humana de valer-se do direito que lhe é próprio como cidadão brasileiro de divorciar-se e contrair novo matrimônio –, a Igreja Católica procura saídas por sobre a legislação brasileira, deixando decisões delicadas a cargo de pessoas e processos não ligados ao Estado, portanto sem garantia de isonomia no tratamento das diferenças.
Assim, o princípio da igualdade é violado duplamente: pelo procedimento, à margem do Judiciário, e por colocar o Estado brasileiro a tratar como estrangeiro, no Brasil, o próprio cidadão brasileiro. Ou seja, neste caso, o texto do acordo atropela a soberania nacional, o Legislativo e o Judiciário.
Na prática, portanto, abre-se a possibilidade da própria Igreja Católica “amarrar” o Direito Civil ao Direito Canônico, numa tentativa de anular a liberdade garantida pelo primeiro em detrimento da normalização, de base teocrática, do segundo. Se isso vier a acontecer, então, de fato, fica a laicidade do estado brasileiro comprometida.
Pessoalmente, me preocupa o fato de que a CNBB, ao ser considerada a grande representante do Vaticano para tratar dos assuntos da Santa Sé no Brasil, seja igualmente responsável para tratar com o estado brasileiro sobre o ensino religioso. Com certeza, se a CNBB mantiver o ensino religioso católico circunscrito às escolas religiosas, ou às paróquias, direito dela. No entanto, em um momento em que se tenta firmar o ensino de religião nas escolas públicas, o poderio desigual de representação da CNBB pode vir a tornar difícil essa discussão, frente à necessidade desse tipo de ensino ser absolutamente ecumênico - isto, se ele vir a ser aprovado - o que este blog, com enorme sinceridade, espera que não aconteça, seja esse ensino religioso católico ou não, ecumênico ou não, na medida em que as escolas públicas precisam se ocupar com ciências e ciências aplicadas, e não com religião. Mas esta é uma outra discussão, que ficará mais complicada, penso, se o acordo entre Brasil e Vaticno for ratificado nos termos em que está escrito atualmente.

Artigo publicado em sexta-feira, 12 de dezembro de 2008 às 6:36 e arquivado em Sem categoria.

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